Por Alessandra Araújo*
No dia 11 de junho, uma amiga a quem dedico muita estima, mais ainda depois dessa data, esteve na 33ª Delegacia de Polícia de Santa Maria/DF para soltar um grito sufocado em 22 anos de existência. Ela, agredida pelo pai, foi prestar queixa contra ele, ciente das novas regras que regem a violência doméstica - Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, pela qual torcemos para que ultrapasse os limites das “belas palavras da lei” e abrace uma realidade nada agradável.
Infelizmente, os idealizadores da lei sancionada em 7 de agosto de 2006 não devem conhecer os “contratempos” pelos quais pessoas como minha amiga são obrigadas a enfrentar.
Ela foi. Contrariando a família que, dentro de uma lógica cruel, mas dedutível, acredita que o melhor caminho é deixar pra lá; os vizinhos que, achando-a “exagerada”, creem que foi só mais uma pancadaria gratuita na rua para animar o feriado dos que não puderam divertir-se de outra forma; e alguns amigos mais conservadores que pensam que ainda se faz “educação” a base da porrada e que repetem hipnoticamente velhas máximas como “pai é pai”. Contra todos esses que deviam apoiá-la, ela seguiu para delegacia mais próxima para prestar queixa.
Nesse momento acreditou não estar defendendo somente a si, mas a toda sua família que cresceu em pedaços, cheia de marcas que jamais seriam identificadas no IML. Mal sabia ela que seus “entes queridos” não seriam os únicos a alimentar sua dor.
Pelo policial que lhe prestou o primeiro atendimento, minha amiga confirmou as suspeitas de que casos como o dela são “normais”. Além disso, viu desdém não só no rosto do policial Rafael, como também nos dos outros policiais, todos despreparados para lidar com esse tipo de situação. Homens que comumente transferem seus padrões comportamentais de “macho dominante” para casos que não estão aptos a julgar. Disfarçam valores irracionais, justificando que seu péssimo atendimento é “culpa do Estado”.
Bem, respondo aos que, assumindo ou não, pensam assim: não mais devemos agüentar caladas nenhuma agressão. Nem mesmo em nome de laços familiares, ou do “precioso” sêmem, ou do arroz com feijão.
O policial que a atendeu, com ares de quem intimida o réu, perguntou se ela sabia das conseqüências daquele ato (a queixa) e afirmou que, depois de feita a queixa, ela não poderia mais voltar atrás.
Aí eu pergunto: onde estão as Delegacias da Mulher em uma hora dessas? Onde estão as pessoas preparadas para acolher as vítimas dessa violência corriqueira? Quem está preparado para dar a essas mulheres o esclarecimento, o suporte, o apoio necessários, já que é previsível que isso não virá de casa?
Provavelmente os mais sabichões me responderiam: na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM/DF, no Plano Piloto. E eu devolvo: lá, onde acontecem a maioria dos casos? Não. Devo, portanto, supor que isso seja providencial... Mais uma “prova” para nossa resistência... E continuariam argumentando que “em cada delegacia, tem um setor de atendimento à mulher”. Acontece que esse atendimento especializado só funciona de segunda à sexta-feira. Ora, todos sabemos que é nos fins de semana que a incidência dessa violência é maior, quando os “machos da casa”, embriagados, cheios de frustração por suas vidas medíocres, transformam suas mulheres e filhas em “sacos de pancada”.
Segundo informações da agente Lúcia Barros, da 33ª delegacia de Santa Maria, esses setores não são vinculadas à DEAM, mas tem um atendimento voltado ao apoio e a esse tipo de ocorrência. As ocorrências dos finais de semana são recebidas como comuns e passam por uma “seleção” para serem encaminhadas para a DEAM.
Não venham, senhores juristas, intelectuais e sabichões, explicar-me porque ainda existem policiais que orientam mulheres nessa situação a voltar para casa e “deixar pra lá”. E se essa mulher, atendendo à orientação, volta para casa e é vítima de nova violência, ou até mesmo perde a vida, quem será responsabilizado? O policial?
As explicações para o porquê dos tramites legais serem tão lentos e distantes das necessidades de quem busca abrigo na lei, já conheço bem. Também sei da falência do Estado para políticas preventivas.
A questão é: quando vossas “grandes mentes” irão parar de criar “retalhos” para as barbaridades que, de tão corriqueiras, não são sentidas nem mesmo pelos que apanham quanto menos pelos que batem? Quando irão se voltar para a construção de políticas eficazes que conscientizem, não apenas a mulher, mas também o agressor, policiais, vizinhos, sociedade?
O que vejo frequentemente são folhetos explicativos circulando em locais de classe média/alta para os “intelectuais” discutirem na mesa do bar. Enquanto isso, mulheres que realmente convivem com essa rotina continuam sentindo-se as grandes vilãs por delatar o “bom marido que só fez isso porque tomou umas a mais” ou “porque foi provocado”.
Quando aprenderemos _ todos nós_ a prevenir, reagir na primeira vez e, com isso, evitar que vidas sejam perdidas por conta da descrença nas crueldades do companheiro?
À minha amiga, reafirmo meu apoio incondicional e orgulho por sua atitude e posicionamento. Aos demais deixo uma reflexão: o cotidiano pode adormecer em nós o sentido de justiça, e isso é até compreensível. Mas fechar os olhos à dor alheia para não comprometer seu mundinho “confortável” é a supremacia da covardia. Isso também deveria ser um crime hediondo. Eu contava que fosse e o julgamento viria por vossas consciências. Mas descobri, um tanto tardiamente, que algumas pessoas não a têm.
*Alessandra Araújo é estudante do 4º semestre do curso de jornalismo na Faculdade de Ciências Socias e Tecnológicas - FACITEC.